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TREZE A UM
Por Victor Calcagno
Numa das aberturas citadas à exaustão na literatura, Tolstói diz em Ana Karênina que toda família feliz se parece, mas toda família infeliz só é infeliz à sua maneira. Não vem ao caso averiguar se o autor de calhamaços jamais fez uma embaixadinha nas estepes russas, mas que essa lógica também pode ser levada a um dos aspectos mais elementares do futebol, o de ganhar ou perder um jogo, é coisa que soa mais verossímil.
Se toda vitória aparenta ter uma narrativa semelhante de heroísmo ou eficiência, seja ela a da virada nos últimos minutos ou da administração da superioridade, toda derrota carrega consigo uma frustração particular, incongruência que nunca se resolve completamente na cabeça de ninguém, do torcedor ao técnico. Sempre que um time perde, é porque algo saiu fora da linha do esperado, num cálculo equivocado que arrasta dezenas de incógnitas e não consegue assumir a obviedade de uma vitória. Em outras palavras, o jogador derrotado parece ter mais a dizer que aquele que vence, ainda que na maioria das vezes prefira ficar em silêncio.
Lembro disso sempre que vem à memória aquele dia na 1ª série em que, com 7 ou 8 anos, eu e meus colegas de turma fizemos o primeiro jogo “pra valer” de nossas vidinhas: um amistoso de futsal entre nossa escola e o time de um clube mantido pelo setor de mineração na cidade, famoso por ser a melhor equipe mirim da região. Ainda hoje eu poderia elencar detalhes daquela partida, lembrar de como a camisa do nosso goleiro tinha um traço monolítico de fita crepe representando o número 1 ou de que os adversários batiam nos nossos ombros e usavam camisetas que encostavam nas canelas, mas prefiro ir direto ao resultado. Perdemos de 13 a 1.
O massacre foi tão humilhante que o pai boa-praça de um dos perdedores quis levar o time a uma pizzaria, fazendo do evento algo menos traumático — e eu, em humilhação ainda maior, tive que recusar a proposta por conta do culto às 19h. Não cheguei a orar pedindo uma explicação para a disparidade das equipes de mesma faixa etária, tanto porque nessa idade as crianças só repetem a oração dos adultos, quanto porque tinha medo de descobrir um motivo cruel e me sentir ainda pior com a verdade já irreversível: nosso time tinha perdido, e perdido muito feio.
Por mais que eu só quisesse esquecer a partida depois do apito final, quase duas décadas depois o momento chave do jogo, nosso gol, ainda me persegue. Não só exatamente o momento em que a bola entrou, mas o contexto e a nossa reação. Os gols que tomávamos saíam tão rápido que o tempo para nosso goleiro desembaraçar a bola das redes largas e a gente se organizar para recomeçar a disputa era maior que o período necessário para a Mineração fazer mais um, dando nova carga ao suplício.
Os meninos do outro time pareciam tão profissionais, ou sem coração, que a cada vez que a bola entrava, depois de uma jogada com canetas e outros requintes de crueldade, nenhum deles se prestava à mais discreta comemoração. Pelo contrário, faziam questão da apatia. A reação era sempre a mesma, automática e fria, de baixar a cabeça e voltar para o centro do ginásio, numa atitude que era difícil classificar se respeitosa ou ofensiva. Pareciam falar uma língua diferente da nossa, alguma que compreendesse ser muito habilidoso e, ao mesmo tempo, já estar de saco cheio disso.
Lá pelos 12 a 0, quando já desejávamos o fim da partida há muito tempo, o Wilsinho acertou um chute forte que nenhum de nós esperava e, mais recuado na quadra, só pude ver quando ele saiu correndo até a linha lateral com gritos e socos no ar, vermelho de esforço e emoção. Nossos companheiros se juntaram ao seu redor com a mesma empolgação em comemorar todos os gols que não tínhamos feito, além daquele que havia entrado. Assombrado pela desconhecida língua apática dos vencedores e querendo não passar vergonha, lembro de correr até eles, preocupado com a reação efusiva do time, e repetir: “Não comemora, não, gente, não é pra comemorar!” É claro que ninguém me deu ouvidos, e ainda bem.
A regra mais básica do futebol diz que quem faz mais gols vence a partida, elimina o adversário, leva o campeonato e se sagra o melhor da disputa, mesmo quando o derrotado jogou de igual para igual. Por uma série de razões, desconfio que essa lógica possa sofrer alguma inversão olhando para aquele mesmo dia na 1ª série, e isso nada tem a ver com discursos de consolação ou encontrar um “lado positivo e de crescimento” nas derrotas, ideia mais próxima aos coaches.
No jogo contra a Mineração, com o placar massacrante de 13 a 1, perguntar quem venceu parece mais que uma dúvida idiota, mas desonesta, um questionamento que abusa da boa vontade de todos e sai da jurisdição da disputa para a do funcionamento do esporte, na qual os participantes necessariamente têm que estar de acordo. Nesse sentido imediato, é bastante óbvio que perdemos de balaiada. Mas em outro, imaginado e distendido, que levasse em conta o efeito da partida sobre os jogadores, a humilhação, a dificuldade e, justamente, as particularidades que cercam mais as derrotas que as vitórias, talvez não seja tão estranho fazer a mesma pergunta.
Não posso dizer com toda a certeza, mas arrisco que nenhum dos pequenos craques da Mineração se lembraria dessa partida atualmente, da dúzia de gols feita com folga e muito menos do nosso tento solitário. Nosso time foi só mais um que atropelaram naquela temporada, talvez o que mais sofreu, e não é exagero pensar que a vitória fácil e elástica não significou quase nada para os pequenos prodígios, já acostumados com os amistosos, campeonatos e, principalmente, com os jogos vencidos. Estranho é notar como os mesmos minutos provocaram uma reação tão diferente e duradoura naqueles do outro lado da quadra.
Prontamente, por áudio de Whatsapp, Wilsinho lembrou minúcias de sua obra mais importante ainda hoje, mais de duas décadas depois. “Nós éramos muito baixinhos e chutei um pouco depois da linha de centro, à esquerda do nosso campo de ataque, bem no alto do goleiro”, contou com a modéstia de sempre no fim: “Mas não foi no ângulo, não”. Na outra ponta memorial dos vencidos, Diti, conhecido pelas meias-bicicleta nas aulas de educação física — nenhuma contra a Mineração — disse por mensagem que não fazia ideia de “quase nada” da partida hoje em dia, mas ficou ofendido quando sugeri que ele talvez não estivesse presente: “Até me magoa você não lembrar a cor da minha Dalponte… Eu tava DEMAIS, abracei o Wilsinho depois do gol dele e tudo kkkkkk.”
O sentido real em se jogar uma partida de futebol e não se lembrar ao menos que ela aconteceu pode ser disputado. Que os jogadores não se enfrentem exatamente para se lembrar da disputa, mas ganhar a partida, parece claríssimo. Ainda assim, essa afirmação deixa dúvidas no sentido mais imediato da experiência. Afinal, o que é mais valioso? Uma vitória que de tão arrasadora é como se nunca tivesse existido na cabeça dos vencedores, ou uma derrota magistral, tão potente que deixou marcas indeléveis? No limite dessa discussão, é possível dizer que os 13 a 1 só aconteceram para o nosso time, como se todos os gatos pingados no minúsculo ginásio de bairro, mães e pais, treinadores, curiosos e o time adversário se evaporassem da História logo após o jogo, deixando toda a memória daqueles minutos para os 8 ou 9 meninos da nossa equipe carregarem ao longo dos anos.
Com o tempo transcorrido até hoje, não interessa pensar se de fato jogamos mal ou se nossos rivais eram apenas muito melhores, mas apenas estar certo de que aquele jogo aconteceu, que tomamos 13 gols e, no fim, fizemos um. De certa forma, é só o nosso time que pode remontar a constelação desses fatos e se lembrar disso. Tal qual panamenhos contra ingleses na Copa de 2018, comemoramos não só o gol possível frente à derrota esmagadora, mas também o nosso gol particular, íntimo, secreto.
Mas ainda que os adversários — talvez hoje trabalhando nas mesmas minas de minério que os pais — se lembrem da goleada atualmente, não seria de admirar que o fizessem com algum pudor ou vergonha. Mesmo nos trucidando, me acostumei a pensar que a vitória da Mineração também pode ter sido humilhante para seus autores, quem sabe num grau ainda maior ou apenas mais inédito que o nosso, os perdedores por excelência. A atitude de não comemorar a cascata de gols deixava claro que os baixinhos-assassinos consideravam que éramos adversários por quem não valia a pena se incomodar ou sentir qualquer satisfação por estarem vencendo. Mas depois dos 5 ou 6 a 0, o que parecia apenas uma vantagem absurda começou a tomar ares de deboche involuntário da nossa parte. E não porque relaxamos, mas, pelo contrário, porque continuamos jogando sério, o que ainda era bastante insuficiente para ao menos congelar o placar, que só aumentava.
A partida então parecia uma afronta apenas por ter acontecido, por alguém ter pensado que seria uma boa disputa e, cereja do bolo, feito os meninos da Mineração também acreditarem que éramos dignos da sua seriedade. A cada vez que a bola entrava e, roboticamente, eles voltavam para o meio campo em silêncio, é como se percebessem a enganação em que foram se meter numa tarde de domingo, a palhaçada indo ao extremo ridículo conforme os 13 gols se amontoavam. O jogo recomeçava e, mais que nossa equipe, parecia ser o time deles que se perguntava o sentido daquilo continuar e por que alguém não jogava a toalha, nem que fosse seu próprio técnico. Seria talvez o único caso de desistência pelo pecado de fazer gols demais ou por ganhar uma partida com eficiência além da conta.
Do nosso lado, no entanto, desde antes da partida não havia enganação. Bastava comentar que iríamos jogar contra a Mineração para ouvirmos um agourento “Xiiii…” que, na nossa cabeça, já representava uma derrota bastante certa, ainda que não tão discrepante. Achávamos, pelo menos, que faríamos uma quantidade razoável de gols, de modo que ainda houvesse méritos a distribuir. O gol do Wilsinho e sua comemoração efusiva, já nos últimos minutos, não foi só uma redenção poderosa, mas também uma sorte imensa, já que era muito mais provável que não fizéssemos nenhum.
Marcar era tão mais fácil para nossos rivais que penso numa espécie de ranking de dificuldade em que talvez fossemos muito mais eficientes que nossos adversários. Nessa lógica sem nenhuma base objetiva, a Mineração fazer 13 gols contra nós poderia equivaler a meio gol nosso diante deles, ou coisa parecida. Se estivessem jogando contra um time muito melhor, cuja diferença de habilidade fosse igual àquela entre nossas equipes, pode ser que não fossem capazes de um golzinho de honra sequer. Em outras palavras, numa casa de apostas que vampirizasse o desempenho de moleques em amistosos no interior do Brasil, estariam pagando muito mais a quem casasse dinheiro num gol nosso do que àqueles indicando 13 gols da Mineração.
Se é impossível aplicar essas medidas ao futebol concreto, também é impossível ignorá-las, principalmente quando se é uma criança fazendo seu primeiro jogo “pra valer”. Por mais que essa conta fosse obscura para os perdedores, a falta de empolgação dos adversários sugeria que a equação era clara para eles, como se fosse preciso fazer outros 13 gols para finalmente abrirem o placar. Esse nível de dificuldade desrespeitado até o limite fez, na partida, que todo o resto fosse secundário, do traço de fita crepe na camisa do nosso goleiro até os próprios gols tomados por ele, da vitória à derrota. Coisa talvez mais impressionante daquela tarde, nosso gol e comemoração foi justamente o que eu quis conter gritando “pára!” aos companheiros de time, ainda sem entender o tamanho daquele chute de fora da área. Entenderam na hora o Wilsinho, o Diti e todos os outros que comemoraram com histeria o gol solitário, coisa que ainda sabem bem — já eu demorei alguns anos.
Como nas particularidades das famílias tristes indicadas por Tolstói, lembro que, no fim do jogo, senti a obrigação de entrar nas particularidades da nossa derrota e tentar explicar, sem ninguém pedir, o que deu errado para a catástrofe ter acontecido. Me enrolei com as palavras, balbuciei frases desconexas, ensaiei uma teoria fajuta sobre entrosamento e falhei em todas elas. O pai que ofereceria o after na pizzaria, compassivo, até tentou ouvir, mas respondeu dizendo que estava bom assim mesmo, que era melhor deixar aquilo de lado, que da próxima ia dar certo. Se de fato desse certo, eu pensava, não teria que explicar coisa nenhuma, já que o placar falaria por todos nós e a vitória seria a explicação mais óbvia de todas. Não pensei na próxima vez, e por mais que tenhamos ganhado alguns joguinhos depois daquele, no fundo é só ele que continua a interessar.
A novidade é que anos depois não tenho dúvidas de que perdemos de 13 a 1, mas consideradas as regras comuns do futebol e subtraídas essas excêntricas e ocultas, da lembrança de um jogo à humilhação reversa e nosso inesperado feito, o resultado não é o regulamentar de -12 gols de saldo para nosso time, além do baile inesquecível. É, sim, o de um saldo estranhíssimo e positivo para os meninos massacrados, ainda que seja uma vantagem de milésimos — como se tivéssemos saído de quadra com um glorioso 0,001 a 0 que considerasse não só a bola, o gol, os jogadores e as quatro linhas, mas os anos seguintes desde o chute do Wilsinho e a memória de todos os perdedores, do futebol em geral e daquela partida em específico. E então não há dúvida de que ganhamos.
Se o esporte não considera nada disso, aí é outra coisa. O azar então é só dele e dos que fizeram gols demais.
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